Projeto Cryoshell, uma história em um futuro cyberpunk - Parte 1
Esta é a primeira de uma sequência de histórias situadas em um mundo cyberpunk vivenciadas por um cara chamado Rickard (o nome não é mera coincidência rsrs).
Mundos distópicos sempre me fascinaram, mas os que estão relacionados com a cultura cyberpunk, ah... esses têm um lugar especial na minha mente. Espero que você também goste!
O ano é 2084.
Nasci em 1981.
Tenho 103 anos.
Mas se você me ver, vai achar que tenho uns 40 e poucos.
E meu nome é Rickard.
Acordo no meio da madrugada, respirando ofegadamente após um sonho tumultuado. Lá fora, uma chuva torrencial cai sobre a cidade de Nova São Paulo, embaçando o vidro da única janela do meu apartamento.
Sento-me na ponta da cama na tentativa de ver algo além do vidro embaçado. Luzes tímidas invadem o cômodo, mas fracas para conseguir iluminar algo. Mesmo com a chuva caindo, me dirijo até a janela e a escancaro para ver melhor o que se passa lá fora.
Hovercars da Polícia Comportamental, com o giroflex iluminando gritantemente as imediações, passam rapidamente próximos da minha janela do 8º andar, provavelmente indo em direção à área pobre da cidade. São veículos voadores escuros, com todos os vidros foscos, e estampado nas duas portas, encontra-se o logotipo da corporação, com a palavra POLICOM situada na parte inferior de cada porta.
No Brasil, as polícias Civil, Militar e Federal, não mais existem. Em seu lugar, foi criada a Polícia Comportamental (incorporação esta, em que também trabalho), composta por policiais da velha guarda e outros jovens arrogantes. Esta nova instituição é patrocinada por um conglomerado de empresas privadas. Com o fim da 4º guerra mundial há 70 anos, muita coisa foi destruída, poderes caíram, ricos ficaram pobres e outros ricos, bem… esses ficaram mais ricos. Com o caos instaurado, o governo com o pouco poder que tinha, precisou de aliar às empresas privadas para poder sobreviver e não perder totalmente o poder de controlar as massas. O setor privado enxergou aí uma grande oportunidade, pois tendo o controle de toda uma nação, poderia utilizar o gado como cobaia para as suas experiências. E mais uma vez a alta tecnologia foi utilizada aqui.
A Policom exerce forte influência no lado mais pobre da cidade, apesar de estar no lado oposto, no dos “ricos”, isso no caso da Nova São Paulo. No lado onde tudo é lindo e bonito, a Policom disponibiliza alguns oficiais para atuar em campo, para o caso de algo fora do comum ocorrer. Mas faz tempo que nada de anormal dá as caras nesses lados.
Mas estou cansado disso tudo, desse controle do governo sobre as pessoas. Isso até os dias de hoje não chegou ao fim. É preciso haver um basta.
Com os veículos um pouco distantes, o piscar das sirenes se enfraquece aos poucos, dando lugar à iluminação fraca dos prédios e de um aviso luminoso do motel Sky Pleasures, localizado no prédio em frente ao meu.
Agora sem sono, no silêncio do meu quarto, vejo que são 4h da madrugada e começo a me recordar do sonho que tive agora a pouco. A imagem de uma mulher, com os seus 30 anos, me vem à mente. Ela coloca a mão sobre a minha testa. De certa forma, sinto que a conheço, como alguém que não vejo a tempos. Lembro-me de uma São Paulo totalmente diferente do que é hoje, com prédios antigos dos anos 2010.
Porque estou tendo estes sonhos? Não é de hoje. Me forço para tentar lembrar dos detalhes do sonho, chegando sempre até a placa de uma estação de trem com o nome de Morumbi. Me lembro perfeitamente daquele som característico do trem chegando, com as rodas freando sobre os trilhos (no meu sonho os trens possuem rodas!)…
Voltando no tempo
Trabalho na área de segurança cibernética da Polícia Comportamental, já que não passei nos testes para atuar em campo, como os demais policiais. Às vezes dou as caras em alguns locais da cidade em horário de expediente…
Sinto que minha vida possui uma certa lacuna, um espaço em branco, como se as contas não batessem.
Tenho lembranças nítidas de uma São Paulo do ano de 2018. Nela, fui chamado para fazer parte do time de funcionários de uma corporação, devido aos meus “dotes” com os computadores. Nessa época, eu era um Hacker conhecido no meio underground, e isso chegou aos ouvidos da polícia, que entrou em contato comigo com aquele papo: “Ou trabalha para nós ou será preso!”. Não tive escolha né?
No processo de contratação, ou seja, naquela monotonia da conhecida integração realizada em algumas empresas, nos pediram para começar a tomar um coquetel de remédios (composto por cápsulas e injeções) quase que diariamente. Falaram que isso ajudaria a ficarmos mais focados no trabalho. Mas com o passar dos dias, semanas e anos, não vi diferença nenhuma nas minhas ações cognitivas. Pelo menos nada diferente do meu comportamento habitual. Pra não dizer que não tive nenhum efeito, precisei conviver com vômitos (e alguns desmaios) constantemente, mas disseram que isso era normal.
Foi então que, no auge dos meus 33 anos, mais ou menos em meados de 2074, percebi algo em minha aparência. Eu não tinha costume de me olhar no espelho quando me arrumava. O reflexo, eram as pessoas, que falavam se eu estava bem ou não.
No caminho do quarto até o banheiro, quando passo em frente a um espelho que está do meu lado direito do corredor, noto o vulto de uma pessoa jovem no espelho. Quando me viro, um homem de 30 anos também me encara. Eu coloco a mão no rosto e ele também coloca. Este sou eu? Espantosamente encaro aquele ser no espelho, que também me encara. Tinha pouquíssimas rugas, os olhos não tão cansados, mas uma expressão serena.
Os anos foram passando, e a mesma aparência dos 30 anos continuava praticamente intacta. Obviamente pequenas mudanças. Resolvo não questionar ninguém sobre isso. Por enquanto.
E eu tinha uma namorada nas minhas lembranças, não nos sonhos. Alguém com que dividi os melhores momentos de minha vida.
Mas ela sumiu sem deixar vestígios. Essas são as informações que tenho sobre eles. Pelo menos foi o que meus superiores disseram na época.
Descobertas
E hoje, estou aqui no ano de 2084, com meus 43 anos (me achando com 103) me deslocando até a Polícia Comportamental para mais um dia de trabalho. Como a turbina inferior de meu hovercar está danificada, então precisei optar por outro veículo. Selecionei no menu do aplicativo um taxi tradicional, daqueles que se movimentam com as rodas no chão. Ainda tem muito veículo assim em 2084, mas é uma minoria se comparar com os demais.
Mesmo quando piloto um hovercar ou quando outra pessoa dirige para mim, fico observando a imensidão de prédios antigos a se perder no horizonte. Aqueles prédios, é como se fossem alguma ligação, um elo com os tempos antigos. Hoje em dia não me lembro com clareza do que aconteceu naquela época, mas sinto como algo estivesse lá perdido, esperando por mim.
Esta convicção tem aumentado fortemente nos últimos tempos.
O táxi me deixa em frente a um imponente prédio, localizado na região central de São Paulo. É o mesmo prédio onde há décadas atrás funcionava um museu, patrocinado por um famoso banco. Resolveram manter as características originais, como uma espécie de homenagem, já que prédios históricos deste tipo eram escassos nos tempos atuais.
Quando as portas do elevador pré-histórico se abrem no andar onde funciona o setor de inteligência da Policom, como que em um passe de mágica, aparece um dos colegas de trabalho dizendo:
— Rickard, o que está fazendo aqui no departamento??
— Como assim? Vim trabalhar ué? — Respondo.
— Os caras estão quem nem doidos vasculhando no sistema quem foi o responsável por acessar o banco de dados de um projeto sigiloso da Policom chamado “CryoShell”. Além disso, outras informações sobre nossas atividades perante as pessoas também foram vazadas. Rickard, te conheço muito bem e sei que andou mexendo onde não devia. Tanto que até chegou a comentar algo não ligado diretamente a isso, mas que me levou a pensar que pudesse ser a pessoa que fez tudo isso.
Não tinha como negar isso para meu melhor amigo. Apesar do pouco tempo (alguns meses) que nos conhecemos. Realmente andei vendo algumas coisas e vazando outras. Sabe como é, o espírito hacktivista sempre existiu em mim. Por mais que eu tenha visto alguma coisa nos servidores do governo, é como se eu não tivesse visto nada. Encontrei uma criptografia forte, que me impediu de ir além. Mas isso é questão de tempo, e tempo é o que tenho de sobra.
Então precisei abrir o jogo para o Raphael.
— É verdade cara, andei acessando algumas coisas sim. Mas fica tranquilo, mascarei minha identidade por meio da Deep Web e consegui acesso à rede interna da Policom utilizando um usuário comum, que me permitiu realizar a escalação de privilégios, onde cheguei a um nível de usuário administrador, que consequentemente tinha acesso a quase toda a rede. Mas não consegui ir até o final, pois encontrei um arquivo pdf protegido por uma forte criptografia em um dos servidores antigos da Policom.
Olho atentamente para os lados, com o objetivo de ver se alguém nos está observando, e puxo Raphael pelos braços, levando-o até uma pequena sala ali perto.
— Raphael, você sabia que existe um departamento da Policom com a função de vagar pelas madrugadas de Nova São Paulo na procura de mendigos e pessoas aleatórias, para colocar esses coitados em uma câmara de criogenia, a fim de saber quanto tempo seus corpos duram? Agora eu te pergunto, qual o motivo de saber quanto tempo os corpos duram? Eu realmente não sei.
— E tem mais — Continuo — Além de saber como os corpos se comportam em uma câmara, achei mais algo interessante: As pessoas aprovadas serão submetidas a entrarem dentro de algum equipamento tecnológico, quase como se fosse um “Colisor de Hádrons”. Sobre isso vi apenas citações, nada muito concreto.
— Cara, não sabia de nada disso. Essas pessoas são levadas a força?
— Provavelmente sim Raphael. — Respondo. Muitos corpos são descartados após um certo tempo, pois não foram nutridos corretamente, não servindo aos propósitos destes fdp. Também, pelas fotos que vi, o lugar parece mais um açougue do que uma clínica. E este local fica aqui no prédio, no quinto subsolo.
— Não está pensando em ir lá? Diga que não. — Pergunta Raphael.
— Não, não vou. Não vejo necessidade. Pelo menos por enquanto.
— Ufa! — Desabafa Raphael.
Nos despedimos ali, com cada um indo para sua mesa.
Sento em frente a minha estação de trabalho e fico com a caneta batendo da mesa, enquanto penso nas coisas a respeito da Policom que vi até o momento. Preciso chegar até o fim disso tudo.
Revelação
Após chegar em casa, sento em frente ao meu pequeno datacenter, composto por 3 monitores, que me permitem ter uma visão melhor das minhas tarefas.
Resolvi pedir ajuda aos meus amigos hackers que conheço pelo mundo, por meio de um novo tipo de BBS (a pré-Internet) e um deles me concedeu acesso a um cluster de servidores. Disponibilizei em um deles o arquivo que encontrei anteriormente nos servidores da Policom e informo que cerca de 200 servidores deverão tentar quebrar a sua criptografia. Com um simples apertar da tecla Enter, o processo todo se inicia.
Tempo de conclusão: 30 minutos.
Enquanto o processo dura, vou até a cozinha preparar um café. Coloco a chaleira (já com água) sob uma boca do fogão, que acendeu o fogo automaticamente ao reconhecer que um objeto tinha sido colocado sob ela.
Após alguns minutos, escuto o apito estridente da chaleira, que solta ferozmente uma fumaça, parecendo um trem antigo em alta velocidade. O café começa a ser coado em uma xícara, que solta aquele cheiro hipnotizante da sagrada bebida.
Preciso de um ar. No caminho até da sacada, passo pelo meu computador e vejo que ainda faltam 10 minutos. Com a xícara na mão esquerda e os dois cotovelos apoiados na borda da sacada, aprecio a vista composta por muitos prédios, luzes de neon piscantes e propagandas em vídeo, enquanto saboreio o café que escorre lentamente pela minha garganta.
Viro a cabeça em direção ao um dos monitores e vejo que no programa aberto, composto por letras verdades sob um fundo preto, aparece uma mensagem em letras garrafais informando que o processo foi concluído com sucesso.
Salvo em meu computador o arquivo já descriptografado e excluo a cópia protegida que foi enviada para o cluster de servidores.
Tomo um longo gole do café antes de abrir o arquivo. Na primeira página aparece um TOP SECRET escrito na diagonal. Na página seguinte aparece algo que faz minhas espinhas arrepiarem na hora:
PROJETO BETA CRYOSHELL
Início do projeto: 01/05/2018
Fase Inicial do Projeto
Candidatos selecionados
(Foto)
Raphael Pires - 2F1B9
(Foto)
Rickard Maganhati - 2F1B10
O que eu e o Rafael estamos fazendo aqui? E porque somente este arquivo estava protegido? O que querem esconder?
Pressiono a tecla ENTER sobre meu nome, o que me leva para outra página do documento:
Candidato: Rickard Maganhati
Data de nascimento: 15/10/1981
Entrada na criogenia: 01/05/2018 – 10:48pm
Saída da criogenia: 01/05/2074 – 10:48pm
Observações: Processo de indução de determinadas memórias e exclusão de outras por meio de medicamentos e células-tronco aplicados via injeção craniana (Hipocampo).
Status do processo: Sucesso
O que é isso?? Tão de brincadeira comigo?
Me levanto rapidamente, bastante atordoado com o que havia acabado de descobrir. De modo cambaleante caminho até o banheiro, onde tiro minha camisa e pego uma máquina de cortar cabelo.
Eu preciso saber.
Coloco no número zero e começo a raspar todo o meu cabelo, ficando completamente careca. Com o auxílio do meu smartphone, tiro fotos de várias partes da minha cabeça, de vários ângulos.
Corro para o computador e transfiro as fotos do smartphone. Abro foto por foto. Eis que então descubro uma pequena identificação, como uma pequena tatuagem, situada logo acima de uma pequena cicatriz.
2F1B10
Meu Deus. O que fizeram comigo?
Continua…